Pular para o conteúdo principal

SOBREVIVENTES

    Naquela tarde fatídica, esgueirando-me da impassividade do Direito e do campo minado que ameaça explodir meus tímpanos já em frangalhos, por uma questão de sobrevivência e necessidade fisiológico-musical, entrincheirei-me na casa do Thael.
    Cheguei ofegante, disritmado, buscando oxigênio nos acordes dissonantes de seu violão. Ainda poderia aventurar-me lá pelas bandas do Luciano ou até mesmo uma pausa para ver esmerar as baquetas nervosas do Robismar, os únicos da cidade capazes de devolver-me o ar. Sensível e compatriado, sapecou logo à queima roupa três canções da lavra Bosquiana: “Corsário”, “Jade” e  “Quando o amor acontece”. O anfitrião soltou um sorriso ladino e, percebendo que ainda respirava com dificuldade, destilou doses cavalares de Djavan, Chico, Tom, Ivan e Edu. Aos poucos, mergulhamos no mar infinito da Música Popular Brasileira e mais pérolas foram surgindo como antibióticos potentes que expulsavam qualquer vestígio infeccioso.
    Papos culturais foram estreitando os laços de uma amizade necessária, a qual preservo com muita estima e admiração, vez que também é um dos sobreviventes em meio ao caos, atuando como músico refugiado em alguns lugares remotos de Rondônia, sempre mantendo o nível artístico, sem nunca se aderir à promiscuidade sonora que prepondera hoje em dia. Segue sua árdua luta contínua como filho bastardo de uma terra que não é capaz de reconhecer seu talento. Meu corpo já podia sentir a seiva da vida correndo nas veias. Aquele momento sublime transportava-me para bem longe desses modismos febris de pura desilusão. O saudosismo tomava conta e remetia aos discos que guarnecem minha casa, um convite para ligar o som do carro e voltar ao casulo.
   Num ato solitário, já totalmente recomposto, antes mesmo que chegasse próximo ao veículo, rajadas de uma metralhadora destrambelhada rasgaram a esmo o céu: “...as que comandam vão no tra, tra, tra, tra, tra...”. Senti o baque da moléstia tentando minar minhas forças reestabelecidas. Imediatamente, antes de ser alvejado, fechei os vidros, disparei o dedo certeiro no play e o pen drive recheado de jazz, bossas, choros e afins isolou-me no mundo dos tarjas pretas que preciso ingerir perpetuamente, os quais não possuem contra indicações e fortalecem minha existência.

Comentários

  1. Parabéns Beto!
    Lindo texto. Continue nos presenteando com suas belas crônicas, trazendo mais alegria às nossas mentes e com certeza uma bela aula de português, gramática, literatura, redação, narração e outros "ção" da nossa "humilde" língua portuguesa.
    Grande abraço.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns Beto, texto bastante filosófico, porém real. Inspiração pura. Gostei. Abração.

    ResponderExcluir
  3. Parabéns Beto, texto bastante filosófico, porém real. Inspiração pura. Gostei. Abração.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

MATANDO O FRANGO

     O Criador absoluto de todas as coisas, em sua infinita misericórdia, resolveu se revelar ao homem através da morte e ressurreição do seu filho amado, Jesus Cristo, bem como manifestando a sua vontade evidenciada na Bíblia, mas também tem usado homens e mulheres como canais de bênçãos sobre a terra.  Assim ele o fez quando permitiu que alguém me trouxesse uma realidade tão evidente, porém em uma frase aparentemente tosca e rudimentar: “Você precisa matar o frango”. Tal expressão ficou martelando meus neurônios durante dias e a compreensão exata dessa comparação trouxe um ensinamento valioso que precisa ser colocado em prática, mas não é tão simples assim.       No Evangelho de João, capítulo 3, versículo 3, há um processo que desencadeia a libertação, isso acontece quando alguém entende que está terminantemente perdido, enlaçado nas tramas do pecado, gerando arrependimento por tais práticas, trazendo o entendimento...

Policarpo

     Hoje o Policarpo me deu o ar de sua graça, mas de seu xará literário, o Quaresma, não tem nada de quixotesco, ostenta apenas o ofício de ceder sua monta. O baita reconheceu logo minha hesitação em desconfiar de sua submissão, mesmo assim apenas murchou as orelhas pardas e partiu a dividir comigo seu mundo.      Marcelo, Ilto e Almiro iam troteando à frente; e enquanto meu companheiro cumpria sua tarefa árdua naquelas veredas, estupefato o admirava pela resiliência em suportar o montador e as pedras que fustigavam seus cascos. Na sela não iam apenas o peso do corpo, as lembranças de meu pai, a saudade de minha mãe, mescladas à alegria de contemplar todo cenário que guarneceria minha família, vinham na garupa, mas o animal não reclamava, seguia firme sua jornada.      No trajeto de volta, em meio à chuva que regia a estreia da aventura, já acostumado com a lida, abocanhou a forrageira, ouviu minhas orações e pareceu ter compreendido o tal ...

A VOZ DO POVO NUNCA FOI A VOZ DE DEUS

     Quem quer que tenha sido o autor desse ditado: “A voz do povo é a voz de Deus”, foi muito infeliz e imaturo, além de pintar a imagem de uma pobre soberania divina, pois se esqueceu de desvinculá-lo do âmbito cultural.      É bem verdade que o povo clama por justiça, respeito, dignidade, fraternidade, paz, amor, termos estes que fazem parte da essência de Deus, de Seu caráter santo, mas quando o assunto é arte, destoa de tal afirmação. O Criador de todas as coisas também é o distribuidor de dons e talentos, tendo presenteado os seres humanos com inúmeras capacidades intelectuais ao longo de toda a evolução histórica: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), por exemplo, o genial compositor austríaco, com seu poderoso talento e expressão versátil, um verdadeiro prodígio, iniciando sua carreira de pianista aos quatro anos de idade e aos seis, realizando sua primeira turnê pela Europa, sendo admirado e aplaudido por todas as classes sociais, foi agra...