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Sapiência sobejante

      Aboletou-se em meio a uma roda de conversas esparsas e sapecou à queima roupa seu falatório pomposo:

     - Disso eu conheço bem, sou cientista, não sei se sabem?!

     Dois deles encolheram os ombros, numa mescla de assombro e desorientação, sendo ligeiramente alertados pelos demais:

     - Esse é seu Ícaro, o cabra mais sabido da região. Ícaro não sei das quantas... (destrinchou o prenome, sobrenome,  comprido que só o diacho, porque cientista que é cientista deve ostentar pelo menos meio metro de escrivinhatura, firmada na força da proparoxítona exigida na pronúncia).

     Tomou conta da roda e palestrou com os holofotes acesos em pleno meio-dia. 

     Seu Ícaro era um outdoor ambulante, espalhafatoso, emblemático, rotava sua reluzência por onde passava e sua ignorância nata assumia ares de elegância, vestia-se de uma sabedoria pelega e brilhava sua ostentação fajuta.

     Pensei no "causo" que me fora contado e especulei cá nos meus guardados outras conjunturas.

     O artista é bicho esquisito, veste a casaca da idiotice para não ser flagrado nu com sua lanterna nas mãos, luz que alumia só sua consciência, engrotado na insignificância de seu ofício desprezado pelo mundo im geral. 

     - cabra besta!, declara um.

     - malassombro! desdenha outro.

     - não presta pra nada! debulha o terceiro.

     - incutido só com o que não dá dinheiro... - dilacera mais uma ruma.

     E vai guardando as glorificações lançadas em seu alforge carcomido pelo tempo. Incha-se como cururu com o sal do desprezo nos lombos, atina seu olhar enviesado e segue resiliente na obstinação de produzir restolhos. 

     Vez ou outra, algum alucinado flerta seu esconderijo, então despista-o, mijando nas pegadas, volta para seu casulo e deixa o alumbrado sozinho na escuridão.

     Seu Ícaro ostentava a alcunha pelo que lembrava apenas de sua permanência nas alturas da mitologia, mas se esquecera de que quanto mais próximo ao sol, as asas de cera se desintegram. 

     Os artistas, não, voam sem ruflar as penas, são como coroinhas malinos que recebem a fagulha do divino, mas comem a hóstia antes dos mortais, no recôndito de sua solidão.

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