É
necessário estar preparado para encarar a guerra sonora que se alastra por todo
território nacional, por isso, para conter os ataques fulminantes e
avassaladores que são arremessados a esmo, sempre carrego armamentos
suficientes (cds, pendrives e MP’s), blindando minha audição com o jazz, a
bossa e o choro, mas nessa última tarde fui saqueado pelo esquecimento e por
uma chuva torrencial que caía sem piedade, enquanto aguardava minha esposa
voltar da loja de sapatos.
Estava atônito, fragilizado, despido no
truculento campo de batalha, apenas com a companhia de um rádio famigerado. Tenho
um medo terrível desse meio de comunicação. Das experiências vivenciadas,
apenas duas exceções auditivas me encorajaram a ouvi-lo: nas madrugadas de Campo
Grande, quando a UCDB mantinha os pés fincados no solo da MPB e ainda não havia
se prostituído com outros gêneros bizarros e nos próprios programas que produzi
e apresentei, logo que cheguei a Rondônia. Durante quatro anos, entre às 13:00 e
14:00 horas, meu programa exibiu uma sonoridade ímpar, recheada de canções
saudáveis, transitando entre o universo sofisticado da Música Popular
Brasileira e o da música instrumental. Agora eu estava ali, preso ao carro e
totalmente desarmado. Poderia ter me atracado ao silêncio, seria a melhor
companhia, mas resolvi arriscar e vencer o medo. Fechei os olhos e liguei o som,
trêmulo, com uma esperança pálida de que algum evento musical milagroso acontecesse,
mas sem nenhum êxito. Logo na primeira estação, um míssil sertanejo teleguiado
acertou meus ouvidos em cheio. O impulso de sobrevivência fez os dedos mudarem
rapidamente para outra frequência, mas em questão de segundos, outro
bombardeio, desta vez uma granada sertaneja caiu sobre o banco do passageiro.
Ainda zonzo, estiquei o braço e consegui mudar para outra. Imediatamente, antes
que fosse novamente atingido, o inimigo avisou pelo megafone, com aquela voz de
boi capão: “Agora é o arena rodeio chegando para lhe fazer companhia”. Antes
que os disparos acontecessem, fiz a última tentativa, frustrada (é óbvio),
mudando para outra que me alvejou sem tréguas, destrinchando balas sertanejas,
transformando meu carro numa peneira. Então, em frangalhos e ofegante, desferi
um soco no painel, finalmente desligando o aparelho. Por alguns instantes
agarrei-me ao silêncio, retomando o fôlego.
Enquanto rumávamos para casa, lembrei-me
de outra peleja que estava por acontecer à noite: a final do programa ídolos. Três
candidatos disputariam o prêmio de meio milhão de reais. Uma garota da linha
americanizada, o sambista solitário e, pra variar, o capanga da linha inimiga,
hasteando a bandeira do sertanejo mobral (esse que alguns iludidos chamam de universitário). Liguei a TV, totalmente desacreditado, já
prevendo o fim trágico e inevitável, mas segurei firme nas mãos geladas da esperança
e aguardei o momento final. A surpresa foi anunciada. A vitória inesperada surgiu.
Não sei bem ao certo, se o jovem Everton
foi realmente o preferido do povo brasileiro ou se houve a participação do dedo
da Record, sei apenas que ganhou quem realmente merecia, pela escolha ousada do
repertório, ao longo da competição e pelo talento inquestionável do artista campeão. Prefiro crer que Deus estava comigo naquele
carro e Seu dedo Santo encontrou a sintonia certa que tanto procurei, ajudando a aliviar meu sofrimento, mostrando-me a face avermelhada do samba que batia forte no peito e dizia: Ainda estou vivo!
Confesso que o poeta me fez tremer nas bases à medida que percorria aflito as linhas do seu escrito e tomar conhecimento dos “ataques fulminantes e avassaladores da guerra sonora que se alastra por todo território nacional”. Mesmo na certeza de que o “Dedo de Deus” também me indicaria uma saída ao final, não me contive em minha impetuosa fúria. O quadro é mesmo tétrico, eu pude perceber o desatinado descaminho na minha primeira volta à terrrinha de Cabral em 2005.
ResponderExcluirTodavia, não tenho dúvidas que o escritor Beto tem condescendência para com a boa música sertaneja, que de fato é a grande vítima nesse desvario. Que não se assustem os membros do Blog, pois a riqueza de metáforas e figuras de linguagem do poeta é apenas uma característica da luxúria dos seu atraente estilo, aliado a uma sutil advertência para que valorizemos a verdadeira arte.
Indulgência certamente deve ser o caminho para todos nós, pois quantos vezes não claudicamos nos devaneios e delírios da vida? Melhor do que ninguém a alma do poeta para sutilmente nos advertir das nossas desvairadas incursões no mundo das fantasias. Quiçá tenha sido este em tempos idos o propósito do grande vate da poesia moderna, Mário de Andrade, nessas despretensiosas linhas do seu Paulicéia Desvairada: “Profundo. Imundo meu coração . . . Olha o edifício: Matadouros da Continental. Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios . . . Minha alma corcunda como a avenida São João . . .”
A expressão singela e popular do “Dedo de Deus” é também fruto da sutileza da alma do poeta para nos asseverar que Deus está sempre presente em nossas vidas, muito embora as “suas mãos” não substituirão as nossas, nas tarefas que nos cabe realizar. Assim, fazendo uso responsável do nosso livre arbítrio, estaremos às salvas dos delírios e desvarios que comprometem a marcha do nosso progresso espiritual. Assim diz outro poeta dos tempos modernos nessas poucas linhas do seu belo poema “O Canto do Homem Novo”:
Bebo o vinho da vida sem pedir licença.
Lavo a face da Terra com a água da verdade.
O fingimento, a mentira, a adulação, a perfídia
provocam-me náuseas.
Quero o mundo como ele é, a vida como ela é.
Quero olhar para a face de Deus como a águia olha para o Sol.
Ninguém é responsável por mim, ninguém me salva.
Deus emancipou-me na minha liberdade e os temores do passado eu mesmo os sepultei.
Do primo e fã Tonheiro