Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2011

RAÍZES DE SANGUE

     Ao som nostálgico de “song pepper”, do guitarrista Mike Stern, enquanto vislumbrava as fotos que registraram boa parte da família concentrada na festa de 60 anos de casamento da tia Ana e do tio Raimundo, no interior do Matogrosso do Sul, a saudade resolveu prender-me em suas asas e transportar para o seio das abençoadas raízes de sangue.      Não foi possível ver o meu rosto entre os demais, uma vez que não pude estar presente no evento. Mas quem disse que algum dia estive distante? Estamos todos conectados por um elo inexplicável. Meus pés ainda tocam a poeira do chão da pacata cidade de Pedro Gomes e a chuva de Campo Grande ainda encharca minha camisa coarada agora pelo sol de Rondônia; o corpo ainda sente os afagos da minha mãe, do filho, dos avós, tios e primos; minha voz se mistura aos sotaques nordestinos que pairam em todas as festividades; os cabelos brancos se fundem com as profundas entradas que anunciam a chegada da precoce calvície, o sangue se agita quando a músic

BENDITAS CONEXÕES

     Os olhos estavam fitos na estrada, mas os pensamentos roçavam as nuvens. Enquanto os pneus agradeciam o novo asfalto da BR 429 e a viagem era embalada pelo som abrasileirado do saxofonista francês, Idriss Boudrioua, minha reflexão tomava como ponto de partida o título do trabalho musical deste instrumentista.      Há vinte cinco anos realizando essas parcerias com artistas brasileiros, Idriss lançou em 2004 o disco “Paris-Rio”. Na capa, o virtuose apenas atravessa uma avenida imaginária que divide os dois países. De um lado, morros, botequins, metrô e Cristo Redentor refletem a cidade maravilhosa; do outro, bares, bistrôs e a Torre Eiffel evidenciam a cultura francesa. Tudo isso deflagrou a importância das conexões, assim tem sido boa parte da minha trajetória profissional como professor.      Nesses quase vinte anos de ofício, muitas foram as conectividades. Algumas realizadas no Estado do Matogrosso do Sul. Criei mentalmente a capa da minha história de ensino. Campo Grande

NA CONTRAMÃO

Bom mesmo é ser torto como o jazz Esguio como a bossa e o samba Andar na corda bamba Trocar as mãos pelos pés Pegar atalhos e fugir da direção Abandonar a canga Dar pano pra manga Provocar confusão Assim funciona a liberdade Dá um nó em quem não entende Mas para quem se rende Sabe que a arte é verdade Não se compra em mercado Vive nas ribanceiras Nas miragens, trincheiras Longe do trânsito engarrafado Meio trôpegos, cambaleantes e incertos Os demais transeuntes são arrastados E a correnteza que os leva amarrados Descambam em vários desertos Com os olhos embotados de terra Entre pedras, poeira e fumaça Não percebem que a vida passa E que já perderam a guerra Assim seguem felizes e escravizados Como se comessem manjares E lá de cima de seus altares Fossem ovacionados Enquanto isso a mídia agradece Segue empurrando a insossa comida fria Que desce macio na barriga vazia Do povo que sorri e perece.

SOPRO DE DEUS

Aqui em Rondônia o sol reina soberano Trabalhador incansável Não tem feriado Não tira férias E à noite ainda faz hora extra Estendendo seus raios invisíveis Pela manhã Sem dar tréguas Lá está ele com sua cara vermelha Enfurecido Pronto para tostar minha pele Desobedece as leis das estações Compra briga com a lua Rompe amizade com as nuvens Engabela o vento Aterroriza a terra Afugenta as chuvas Não barganha com ninguém Em agosto seu ego se inflama Torna-se pedante, intragável Sua cólera visceral empomba Então veste sua capa escarlata E desfila galante Exibindo sua arrogância mórbida Às vezes ele se dá mal Quando isso acontece Murcha as orelhas Afina a voz Esconde seu sorriso amarelo E se desfaz ao simples Sopro frio de Deus para aquecer meu coração campograndense.

CONVIVÊNCIA PACÍFICA

     O convívio com a corrupção vem de longa data e não se limita apenas na questão política, engloba todos os setores.      Quando esse termo é mencionado logo vem à imagem ilicitudes de grande porte, tais como: lavagem de dinheiro, desvio de verbas, vantagens indevidas, apoderação de bens públicos etc, mas a corrupção tem se alargado em grande escala e se avolumado de tal forma que já faz parte do cotidiano. Sua manifestação pode estar presente em momentos corriqueiros: boicotar uma simples fila de banco, adquirir produtos piratas, fazer ligações gratuitas de um orelhão com problemas, falsificar a assinatura para que um determinado pai não saiba das notas baixas do filho, enfim, esse festim com a ilegalidade torna-se algo comum.      Os que não compartilham com essas atitudes fraudulentas estão fadadas ao fracasso, ainda não aprenderam a viver de forma ousada, sofrerão as consequencias de ficarem ultrapassados. Para sobreviverem nesse campo minado precisam se adequar ao “esquema

RECEITA TUPINIQUIM

1 pitada de Toninho Horta 1 quilo de Chico Buarque 2 quilos de Tom Jobim 1 masso de Pixinguinha 2 colheres de sopa bem cheias de Villa-Lobos 1 colher de Victor Assis Brasil 1 xícara de Nico Assumpção 200 gramas de Edu Lobo 500 gramas de Ivan Lins 2 porções de Rosa Passos Luiz Gonzaga a gosto. Para o molho Jackson do Pandeiro Ernesto Nazareth Sivuca Rildo Hora João Gilberto Raphael Rabello Vinícius de Moraes Francis Hime Djavan João Bosco Joyce e Leny Andrade. Refogue tudo na panela de barro e sirva bem quente acompanhado de Noel Rosa Cartola Ary Barroso e Hermeto Pascoal. OBS: Essa comida possui muitas calorias Além de vitaminas M, P e B Não contém contra indicações E seu uso abusivo pode causar o vício do paladar apurado aprimorando as papilas gustativas. Precauções: Evite misturar com outros tipos de alimentos, tais como: Sertaneja, pagode, funk carioca, axé, calypso e seus derivados. Tais gêneros estragam

LEVITAÇÃO

     Os olhos esfuziantes, ouvidos atentos aos acordes dissonantes, pernas agitadas pelo ritmo torto e envolvente, dedos como baquetas desferindo golpes certeiros em tudo que se vê pela frente e as nuvens roçando os cabelos. Assim sou tomado pela música e levado para muito longe daqui. Para onde vou, não sei, mas sinto que os pés se desprendem do chão.      Nesses momentos de delírio musical, muitas imagens também se apoderam desse estado de espírito trazendo recordações ainda frescas na memória: as inúmeras visitas ao Hamurabi (o maior sebo de Campo Grande/MS), garimpando raridades; os primeiros contatos, ainda no tempo das espinhas, com Metheny, Bireli, Jaco, Wes, Ritenour, Toots, Weckl, Miles, Parker, Coltrane e tantos outros consagrados artistas jazzísticos que guarneciam as prateleiras do primo Edson di Carvalho; os shows de Gil, Djavan, João Bosco e Gal, acompanhados pelos talentosos instrumentistas, Armando Marçal, Kiko Freitas, Marcelo Martins, Nelson Faria, Carlos Balla, Ma

PRA QUEM SABE OUVIR

     Há um disco excepcional do compositor, Edu Lobo, cujo título é “Corrupião”, lançado em 1994, pelo selo Velas. Na capa, o pássaro está pousado sobre a cadeira onde se encontra o artista. Trata-se de uma das aves mais lindas e de voz mais melodiosa deste continente, comum em áreas da caatinga e zonas secas abertas, onde pousa em cactáceas, e também em bordas de florestas e clareiras, nos locais mais úmidos. Vive aos pares. Não costuma acompanhar bandos mistos de aves.      Nas composições, Além de Edu, Aldir Blanc e Chico Buarque completam o naipe de mestres. Já os músicos, Nico Assumpção, Jurim Moreira, Marcio Montarroyos, Gilson Peranzetta, Paulo Bellinati, Teco Cardoso, Mauro Senise, Mauricio Einhorn, Serginho trombone e Marcos Suzano formam o restante da equipe de craques, tornando essa obra antológica.      Uma das faixas tem o título de “Ave rara”. Assim são esses artistas, como o corrupião. Poucas pessoas são capazes de ter a sensibilidade para admirar seu canto. Para os i

TUDO EM SEU LUGAR

     A Música Popular Brasileira é um poço fundo de ilusões. Em suas águas cristalinas e infindas, cada banho é uma sensação de frescor diferente. Ela instiga a vontade de beber cada vez mais dessa fonte. Muitas são as vezes em que preciso retirar toda essa poeira vermelha da vida que insiste em manchar minha tez. Então, apenas ligo o chuveiro sonoro e as águas descem como torrentes.      O título desse artigo tem como base o poema “Cada tempo em seu lugar”, do exímio compositor, Gilberto Gil. Uma obra-prima. Receba os respingos dessas gotas límpidas: Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar Não posso me esquecer que a pressa É a inimiga da perfeição Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos Aprendi a ser o último a sair do avião Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum Não posso me esquecer que o açoite Também foi usado por Jesus Se eu ando o tempo todo

PRECISO SER

Preciso andar ligeiro acordar cedo Ir à igreja Bater cartão Andar na moda Comer salada Ser aprovado Pelo patrão Preciso saber nadar Subir escada Lavar o carro Fugir do não Encolher os ombros Estancar o choro Aprender o ofício De olhar pro chão Preciso aceitar o açoite Ser muito forte Esquecer a morte Saber a direção Abrir o sorriso Acostumar com a saudade Encarar a dor De andar na contramão Preciso ser discreto Assoviar mansinho Pisar macio Pelo salão Gostar de sítio Ganhar dinheiro Economizar Fugir da ilusão Preciso andar com rédeas Quebrar os discos Ouvir as regras da sociedade Manter-se na posição Virar fantoche Respirar, até pode Contanto que sobre Oxigênio nesse balão Preciso ser outro homem Agradar a todos Negar a tudo Não sair de encenação Apenas para Deus Não preciso s er Além do que sou Aqui dentro do coração

ETÉREA

     Creio que os sons já soavam no ventre da minha mãe. Lá dentro ela ensaiava para nascer comigo. Hoje vive aqui, latente, assombrosamente viva dentro de mim. Obrigado, Deus, por me conceder esta música que nunca tem fim. Não posso tocá-la Mas a sinto sempre aqui Companheira das horas amargas Redoma que guarda meus anseios Asas do refúgio e da necessidade Não tens nome, nem cheiro Existe apenas Às vezes quieta, tresloucada Mil faces rarefeitas Embutidas na dor e na saudade Bússola norteadora dos meus passos Notas perfeitas e eternas Correnteza que arrasta a solidão E me arremessa nas rochas Na vazante do descanso Minha irmã verdadeira Frenesi, mistério, delírio Êxtase, febre, loucura Vestígios de sonho e vida Cúmplice do prazer e da ternura Convidas-me para dançar Uma valsa, um tango Ou embriagante milonga Trôpego me desmancho No silêncio de sua pauta solta no ar Sem ritmo ou compasso Apenas sigo meu destino Solto e

QUANTO VALE?

     No dia 14 de julho de 2011, às 23:00 h, no aeroporto de Ji-Paraná/RO, uma grande emoção tomou conta do lugar e se avolumou de tal forma que foi difícil conter o choro. Era a chegada de alguns membros da família Lacerda. De longe se podia ver os cabelos brancos dos integrantes que vinham de Campo Grande/MS para comemorar minha colação de grau, cerimônia realizada na Ulbra, no dia posterior, reunindo quase 60 bacharéis em Direito. Dentre os parentes, os tios, Misa (Misael Hélio), Sabirila Hair, vulgo Frango Vit (Elino), Zé Paganela (José Lacerda) e Maria do Rancho (Maria), além dos primos, Téiu, (Luís Fábio), Amiltu Ceza (Hilton Cézar) e Borba (Floriano Neto).      Parte desta festa já havia começado com a comemoração do meu 1º aniversário de casamento, além da chegada de Madrinlurde, minha mãe querida. Os demais foram se acomodando aos poucos. Frango Vit, Misa, Téiu e Amiltu ficaram hospedados no hotel do Salim, uma espécie de aventureiro que contava histórias vistas apenas nos

ÁGUAS PERIGOSAS - Conto do livro "As presepadas de Dalai", 2008

     Juda foi o maior beneficiado pelas gentilezas empregatícias de Dalai, foi com ele que aconteceram as principais presepadas e aventuras, uma delas foi a visita às cataratas. Na verdade, as águas não passavam do joelho.      Para que o passeio não fosse interferido por nenhum imprevisto, Dalai realizou uma espécie de palestra para a equipe formada por Juda, Yarabela e Beth Mundrongo, detalhando o local, descrevendo os perigos mais iminentes, precavendo-se de qualquer espécie de infortúnio. A organização e a tática sempre foram aliadas ao comportamento de Dalai, seu espírito aventureiro não dispensava certas precauções, não gostava de correr riscos, mantinha-se numa linha mais metódica, calculista, a fim de que nada pudesse sair do seu comando estratégico. Sendo ele o único que conhecia bem o local onde seria realizado o acampamento, as coordenadas preliminares foram apresentadas:      - Olha, gente, lá a queda d’água é violenta, o barulho é ensurdecedor. Alguns até dizem que as

PROPOSTA INDECENTE - Conto do livro "As aventuras de Borba" (2007)

     Era um domingo. Bororo, Bozo, Giseuda, Gisélia, Humberto, Macumbé, Fernando, Zana e Borba brincavam de esconde-esconde. Mesmo sendo mais inocentes que as crianças da cidade, eles tinham seus momentos de malícia. Borba gostava de se esconder com Zana. Sempre achavam um bom lugar para permanecerem ocultos, de preferência que durasse muito tempo para que fossem encontrados.       Finalmente a oportunidade surgiu. Borba teve a chance de pôr em prática mais uma de suas ideias geniais: lembrou-se de uma caixa de lápis de cor, da fábrica Faber Castell, a preferida pelos alunos, que havia ganhado da mãe. Mesmo gostando do presente e assumindo o risco de fracassar com o plano, arriscou.       Trancaram-se no galpão. Zana estava com um vestido estampado, mostrando parte das pernas grossas e empoeiradas, aquelas que roubavam algumas noites de sono do nosso herói. Ele olhou para o chão, meio envergonhado, pensando em desistir da ideia, mas venceu o medo e disse:        - Zana, dou-lhe

GERANDO EMPREGO - segunda parte (Conto do Livro "As presepadas de Dalai", 2008)

     Bronson foi outra vítima da generosidade de Dalai. Vindo de Pedro Gomes, cidade pacata do interior de Mato Grosso do Sul, o primo estava desamparado, não conhecia muitas pessoas na cidade grande e havia encerrado sua carreira de jogador de futebol. Não demorou muito para que Dalai também desse “aquela forcinha”. A estratégia era a mesma: sair nas baladas e apresentar-lhes a moçada, assim ficaria mais fácil encaixá-lo nesse novo universo.      Mesmo no agito, rodeado de amigos e, principalmente, “amigas”, Dalai não descuidava, sempre atento às reações de Bronson, observando suas maneiras, trejeitos, manias, querendo buscar algo que combinasse com seu estilo. Seu coração amolecia quando se punha a pensar que o tempo estava passando e era necessário arranjar-lhe alguma ocupação.      E aí, Bronson, já arranjou algum esquema? – incitava Dalai.       - Tranquilo, está tudo sob controle.       Dalai abria aquele sorriso maroto e falava em pensamento: “garoto esperto, puxou a mi

NICANOR, O TERRÍVEL (Conto do livro "As aventuras de Borba", 2007)

     Algo que também acontecia muito nessa época eram as fortes dores de dente provocadas pelo excesso de balas, pirulitos, suspiros, marias-moles, paçocas, chicletes e outras guloseimas que os meninos adquiriam com os serviços prestados na fazenda. Eram fregueses assíduos do Loro, de Seu Raimundo Batista, da Dona Vá e Dona Elvira. Borba também furava as latas de leite condensado que eram vendidas no bar de sua mãe, o - “Nossa Senhora Aparecida” e tomava num gole só. Borba, Bozo, Bororo e os demais companheiros investiam suas economias nessas açucaradas delícias e o prazer tornava-se mais tarde em cáries que se alastravam pela boca. Foi exatamente nesse período que Borba passou a ter novas ideias.      Na cidade havia um homem muito temido pelos meninos: Nicanor, um dentista gordo que carregava uma enorme mala com seus apetrechos odontológicos – um boticão e uma seringa para anestesia. O povo comentava que ele só trabalhava “melado”, se estivesse sóbrio, esquecia-se de como exercer

GERANDO EMPREGO - primeira parte (Conto do Livro "As presepadas de Dalai", 2008)

     Depois da difícil vida de empregado, Dalai passou a investir no ramo de pneus, tornando-se proprietário da loja “Roni Pneus”, mas isso não o impedia de se aventurar em outros negócios, sempre com aquele espírito solidário, buscando ajudar os outros, gerando oportunidades de emprego.      O primeiro a ser favorecido foi seu primo Vandeco, que morava em Dourados, mas devido à escassez de trabalho, tornou-se guarda de carro. Na verdade ele tinha sido contratado para trabalhar na loja, mas seu talento natural era outro e não passou despercebido pelo olhar clínico de Dalai.       Na loja, Vandeco, Preto e Nenê revezavam o serviço: cambagem, caster, alinhamento, balanceamento, troca de óleo, enquanto isso Dalai ficava apenas observando os funcionários, mas quando chegavam as garotas, aí ele fazia questão de atendê-las. O tratamento era diferenciado, servia-lhes café, bolo, chocolate, capuccino, água gelada, suco natural, água de coco, sujava-se de graxa, empenhava-se para deixá-la